Canções-poema #2: Tu Disseste - Mão Morta

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Para além de advogado e de vocalista dos Mão Morta, Adolfo Luxúria Canibal é poeta, e dos bons. Não admira portanto que as músicas da banda sejam na sua maioria autênticos poemas, verdadeiras odes à nossa língua, inebriadas de um negrume sentimental.

Como canção-poema, escolhi hoje a "Tu Disseste" do álbum "Primavera de Destroços" de 2001. É um fabuloso álbum da banda de Braga e de lá saíram estandartes como "Cão da Morte" ou "O Jardim". Os Mão Morta são das bandas mais importantes e mais antigas do panorama português em actividade e vão aparecer por aqui mais vezes.

E agora, a fantástica letra de "Tu Disseste", por Adolfo Luxúria Canibal e Miguel Pedro, para ler acompanhada da música, com estas notas de piano para mim inesquecíveis:

Tu disseste "quero saborear o infinito"
Eu disse "a frescura das maçãs matinais revela-nos segredos insondáveis"
Tu disseste "sentir a aragem que balança os dependurados"
Eu disse "é o medo o que nos vem acariciar"
Tu disseste "eu também já tive medo. muito medo. recusava-me a abrir a janela, a transpôr o limiar da porta"
Eu disse "acabamos a gostar do medo, do arrepio que nos suspende a fala"
Tu disseste "um dia fiquei sem nada. um mundo inteiro por descobrir"
Eu disse "..."

Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada"

Tu disseste "agora procuro o desígnio da vida. às vezes penso encontrá-lo num bater de asas, num murmúrio trazido pelo vento, no piscar de um néon. escrevo páginas e páginas a tentar formalizá-lo. depois queimo tudo e prossigo a minha busca"
Eu disse "eu não faço nada. passo horas a olhar para uma mancha na parede"
Tu disseste "e nunca sentiste a mancha a alastrar, as suas formas num palpitar quase imperceptível?"
Eu disse "não. a mancha continua no mesmo sítio, eu continuo a olhar para ela e não se passa nada"
Tu disseste "e no entanto a mancha alastra e toma conta de ti. liberta-te do corpo. tu é que não vês"
Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada"


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